quarta-feira, 18 de junho de 2014

Em erguer

Energia é uma palavra que tem um sentido físico rigoroso, mas que é muitas vezes utilizada de forma arbitrária.
Energia é recentemente associada a algo místico, indefinido. Lembro-me que quando visitei o Egipto, havia um grupo esotérico procurando captar "energia" das pedras ou dos locais!
Há toda uma religiosidade que vive de indefinições. As indefinições são muito importantes para as crenças, porque pretendem significar tudo... não significando nada. É muito frequente encontrar isso em discursos retóricos complexos, artísticos, políticos ou religiosos, que factualmente se resumem ao vazio.

Do ponto de vista científico, energia equivale a trabalho. Talvez por prurido, fala-se em lei da conservação da energia e não em lei de conservação do trabalho. Trabalho é a multiplicação de uma força pelo deslocamento, e força só é diferente de aceleração porque é multiplicada pela massa.
Como quase todas as grandezas físicas, a energia está ligada ao movimento... ao movimento que acontece (energia cinética) ou ao movimento que se prevê acontecer (energia potencial).
Em erguer está essa en-erguia, energia.

Bom, interessa-nos aqui uma observação simples, mas que merece reflexão.
No nosso mundo bem ordenadinho, coisas pequenas raramente provocam grandes estragos.
Ninguém está à espera que um grão de areia esmague ninguém... 
Porém, numa situação muito instável, basta um grão de areia para fazer rolar um enorme pedragulho.
A instabilidade é assim uma situação que pode repor equilíbrios na natureza... dando um poder enorme ao pequeno grão de areia.
Grande parte do nosso dia-a-dia foi tornado mais confortável pela capacidade de controlar grandes instabilidades, a ponto de um simples premir de um acelerador ser capaz de pôr veículos de toneladas em grande movimento... ou de um simples toque no volante de um carro ser a diferença entre o caos e a ordem. 
Pior, havia o perigo da Guerra Fria... em que o simples premir de um botão poderia gerar um inferno nuclear à escala planetária. Creio que nunca se gerou tanta instabilidade na Terra, a ponto de "uma certa combinação de neurónios num cérebro" poder gerar uma catástrofe planetária.

Portanto, a capacidade energética superior que manipulamos foi resultante de compreender como usar as instabilidades a nosso favor. Ficámos mestres do caos, entendendo-o, e controlando-o, e quando sai do controlo chamamos a isso "acidentes":
... um fio e um rato.

Energia liga-se a Poder, pelo controlo da ligação de instabilidade.
Se o poder está num "botão" e não num "botam" (botam ou votam, que vem do verbo "botar"), fica associado a uma única instabilidade.
Portanto, o sonho de maior poder não é mais que um sonho de abrir mais as portas ao Caos, já que o controlo da ligação tanto pode pertencer a um cérebro são, como a um cérebro insano... ou, em certas circunstâncias, até a um simples rato. Há assim, nalguma mitologia, a ideia de que um simples artefacto poderia fazer essa ligação, como um botão de Poder.
Ora, por definição, ninguém controla completamente o Caos. A cada instabilidade que geramos associam-se as instabilidades já existentes, e os potenciais acidentes daí decorrentes.
Ora, ora, então porque não foi o Caos convidado para esta festa universal?
Se as instabilidades estão aí, são latentes, e podemos aproveitá-las, por que razão não se instalou o caos mais cedo... e esteve à espera que o libertassem, qual génio na garrafa?

Se excluirmos a vida na Terra, os fenómenos mais instáveis são os atmosféricos, mas dificilmente têm um ponto gerador automático. É um caos que resulta da combinação e actuação de múltiplas partículas... as partículas "votam", e não é nenhuma que tem o botão.
Ou seja, as borboletas podem voar à vontade, que não é o seu voo que gera uma cadeia de eventos atmosféricos. Como é óbvio, não têm uma máquina atmosférica à sua disposição... 

Assim, até à introdução de vida na Terra, os fenómenos que se presenciavam eram razoavelmente previsíveis, pelo menos não passariam de instabilidade pior que a atmosférica. Ou seja, há leis físicas previsíveis que regem os fenómenos visíveis, e a imprevisibilidade resulta mais de uma acumulação complexa dessa previsibilidade.

A presença de vida na Terra foi o primeiro pé que o Caos colocou neste universo.
Assim que a vida começou a proliferar, a paisagem terrestre deixou de ser tão previsível.
A vida é assim a primeira assinatura do Caos. 
Um organismo vivo, uma célula, começou a possuir uma complexidade crescente, até ao ponto em que não se encontra um conjunto de leis físicas simples capazes de prever o comportamento de um organismo vivo. 
Portanto, a principal característica de um organismo vivo é incorporar imprevisibilidade dentro de si. Mesmo assim há um conjunto de regras definidas numa simples codificação do DNA.
O DNA seria uma maneira da natureza escrever regras que definiam as características principais daqueles organismos. Porém, é claro que a réplica descontrolada desses organismos, levaria a um universo trivial, onde só se libertaria um aspecto do caos. As leis físicas deste universo, respeitantes à conservação de energia, implicavam um custo de espaço e tempo... algo a que normalmente se chama alimentação.
Sim, o nosso universo físico aceita um alojamento do caos, mas a renda tem que ser paga em energia. Se alguma coisa se quiser mexer, tem que sacar energia de algum lado. Isso força a que a manifestação caótica não seja qualquer, é orientada por uma ordem - a ordem de comer.

Ora, essa ordem de comer condicionou o caos que se instalava por via dos organismos. O DNA passou a servir como uma forma do Caos entrar e não ficar limitado a manifestações simples, pouco caóticas. Porquê? Porque o domínio de um organismo simples, como bactérias, não permitiria a entrada de toda a complexidade caótica... no máximo haveria um caos de bactérias.
Assim, o Caos ia assinando as mudanças nas cadeias de DNA, gerando organismos cada vez mais estranhos, dando um pequeno colorido de todo o Caos que ainda aguardava a entrada. A Terra servia de tabuleiro com regras, onde o jogo era jogado... e o único jogador era o Caos. Da mesma forma que o caos gerava novas formas de vida, sempre diferentes, também o caos se encarregava de as aniquilar... mas o jogo estava a ser ganho, pois a cada forma de vida mais complexa, mais se exibia a entrada de seres imprevisíveis. Essa imprevisibilidade era jogada no próprio confronto de uns seres contra os outros, o que permitia a entrada de factores cada vez mais complexos.

O novo ponto onde entra o Caos é assim com os animais, por via do cérebro. O DNA servia para uma competição alimentar, mas o novo passo é uma alimentação autofágica das manifestações caóticas. Os organismos vão competir pelo Caos com maior sucesso, não por pré-programação, mas com auxílio de um cérebro programável, seria por actuação directa, em "tempo real".

Mesmo assim, quase todas as regras saem do DNA. A atitude de um animal não é substancialmente muito diferente dos outros elementos da sua espécie. Não havendo herança para além da herança genética, o DNA continua a dominar os processos automáticos, intuitivos. O animal tem a possibilidade de introduzir novo caos, já que por via da sua experiência pessoal pode não tomar a mesma atitude que viu ser-lhe nefasta. Mas, por outro lado, isso é já uma educação do caos às regras da Terra.
Até ao advento humano, essa experiência pessoal não tinha história, seria no máximo uma educação unipessoal, e para os seguintes não tinha outra memória que não fosse a intuitiva herdada do DNA. Foi o papel familiar humano, que levou a uma educação com histórico não genético.

Assim, quando os humanos começam a comunicar e a deixar heranças no tempo, o DNA perde o seu carácter de único educador do organismo. Passa a haver outro código genético a funcionar - a linguagem. É através das palavras, das noções que lhes estão associadas, que se começa a escrever outra herança - a herança humana.

Ninguém parece considerar muito estranho que as palavras do DNA sejam CGTA, correspondentes às quatro bases de ácidos nucleicos. Pois bem, essas quatro palavras poderiam servir para descrever a ordem animal... mas eram insuficientes para a ordem que emergia de um Caos muito maior.
É da ordem desse Caos total que surgem então as palavras que estão para além da matéria... as palavras associadas a uma ordem muito superior, eterna (e não meramente acidental, que se dilui na transitoriedade material, energética). Essas noções abstractas nunca estiveram escritas no DNA, apenas se tornaram visíveis quando se evoluiu para cérebros que as pudessem ver... da mesma forma que a simples visão só foi possível quando se constituíram os primeiros olhos.

O que se vê então através dos cérebros humanos?
A abertura que o Caos conseguiu nas regras do universo terrestre. É claro que a imensidão de possibilidades caóticas só está limitada pelas regras físicas do nosso universo. De alguma forma são aceites, se forem "bem comportadas", como uma distribuição numa curva Gaussiana. O que vemos é a ordem que é possível extrair do caos para este universo.
À luta entre animais diferentes, protagonistas de diferentes manifestações de caos, sucedeu a luta entre o mesmo animal dominante, que em última análise leva do confronto com o seu semelhante ao confronto consigo mesmo. Assim, a evolução caótica leva ao confronto do Caos consigo mesmo... pelas simples manifestações imprevisíveis que sabe poder gerar no pensamento.

O pensamento próprio, quando aberto, passa assim a ser o último lugar de confronto. É desafiado pelas diferentes questões, pelos diversos medos, até que encontre consistência em si. Não englobará todo o caos, mas engloba uma ordem que permite compreender uma parte dele, a parte que tem conhecimento e que se manifesta em questões relevantes. O outro caos, imprevisível, aceita-o... com um riso, numa imprevisibilidade boa, ou com uma lágrima, enquanto imprevisibilidade má.
Afinal, a lágrima e o riso... duas características humanas que medem o grau de aceitação da imprevisibilidade ou da impotência perante a previsibilidade nas regras terrestres.
O nosso pai é o Caos e a nossa mãe a Terra (ou se quisermos, o universo físico).
A alma que alimenta o pensamento é paterna, e o corpo que o acolhe é materno.

A questão por resolver é saber se o Caos pode colocar questões que ainda consigam surpreender, algo que me parece difícil neste contexto terreno... mas sem dúvida que a ilimitação caótica procurará sempre alargar a sua presença, numa necessidade incessante de se reflectir num espelho terreno. Poderá fazê-lo no campo das ideias, onde não fica presa às condicionantes físicas... e a porta tem que ficar aberta por aí, para que não sinta necessidade de se manifestar por outra via.
E é no campo das ideias, fora da limitação terrena que se entra noutro universo onde o Caos pode imperar sem ordem... porque se todos somos filhos terrenos, nem todos percebemos que a sanidade mental não passa sem a lógica.

Porque quando colocamos o pé fora da Terra, arriscaríamos a ficar sem pé... e a única base que permite uma plataforma fixa de sustentação é o raciocínio lógico, sob pena de ficarmos perdidos no mar de nada. É o raciocínio lógico que nos orienta no universo acima do universo físico.
Porquê?
Porque não somos seres com múltiplas personalidades. Não há lugar a bivalências... não é possível ser e não ser ao mesmo tempo. Não é possível experimentar ser uma coisa e ser outra ao mesmo tempo. Não podemos ver vários futuros e escolher o melhor... está decidido qual é o nosso futuro, esse é o preço de acolhimento da "avó" lógica - conduzir-nos na verdade pelo único universo que não é um total caos.

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