sexta-feira, 29 de março de 2013

WHC (4) Bhimbetka, Chauvet

As pinturas rupestres nas rochas de Bhimbetka, no centro da Índia, são um dos monumentos humanos classificados no World Heritage Convention (WHC) da UNESCO. Já falámos noutros 3 (Paisagem da Ilha do Pico, Villa Romana del Casale e Nemrut Dagi), este será o quarto escolhido, lembrando outras pinturas rupestres mais conhecidas, as da zona de Lascaux, de Altamira, ou ainda as da zona do Coa até ao Escoural.

Não sabemos se se trata de um outro caso isolado, mas curiosamente não há muitas pinturas rupestres que nos levem longe na memória da noite dos tempos. Para além das mais notáveis ibéricas, e especialmente do sul de França, temos alguns registos noruegueses, e estes indianos, na grande superfície euro-asiática. Há outros na América, África, Austrália, mas começaremos por falar nos registos indianos, que nos parecem menos conhecidos.

Bhimbetka (India)
A primeira imagem de Bhimbetka (Madya Pradesh, India) encontramos na página da WHC:

Sendo surpreendentes, não vemos aqui uma arte no traço como acontece em Altamira, Lascaux, ou no Coa. Estas pinturas foram datadas num período até 30 000 a.C., sendo algumas delas consideradas recentes, já dentro do período histórico, e até medieval. 
De acordo com a informação disponível na wikipedia, esta figuração que inclui invulgares imagens cavaleiros, poderá ser datada até 2000 a.C:
Fala-se ainda de representação de bisontes ou rinocerontes, como encontradas no registo europeu, mas incluindo-se ainda tigres, os felinos característicos do subcontinente indiano.

Chauvet, Lascaux, Altamira, Coa, etc.
A grande diferença face às pinturas rupestres europeias (Sul de França e Iberia) acaba por residir na espantosa precisão artística, que ainda hoje surpreende na datação, que nos remete a períodos entre 24 000 e 30 000 a.C., ou seja à época de aparecimento dos Cro-Magnon.
Os notáveis desenhos em Chauvet (sul de França) - bisontes, cavalos, rinocerontes.

"Cave of Forgotten Dreams", um filme de Werner Herzog (2010)

Chauvet será um dos conjuntos mais recentes a juntar à lista de Altamira, Lascaux, e Coa.
Remetemos para a página Arte-Coa, que inclui informação sobre outros locais nacionais (Escoural, Guadiana, Zezere, Ocreza, Fraga do Gato, Mazouco, Sabor), em Espanha (Altamira, Siega Verde, Domingo Garcia, Parpalló), e em França (Rouffignac, Lascaux, Chauvet, Cosquer).

O mais espantoso neste conjunto é que o traço artístico perfeito apareceu como característica quase inata em diversas localizações... deixando a questão de como se poderia ter perdido nalgumas civilizações muito mais avançadas, que se seguiram às tribos habitantes das cavernas.
Enfim, já falámos sobre este assunto no texto sobre a "Hera dos Cobres" (e pela sua actualidade, convirá lembrar que Chipre, a ilha sob investida dos "chiffres" da UE, deriva o nome do Cobre - Cuprus). E só por curiosidade, de Cuprus a Caprus, do Chipre ao chifre da cabra, aparece-nos uma cornucópia primitiva na paleolítica Vénus de Laussel (também Sul de França):
Cornucópia - Vénus de Laussel (~ 25 000 a.C.)
... e sobre as cornucópias de Cíbele também já nos pronunciámos.

Outros registos
O problema principal é que quando passamos para registos seguintes, notáveis, como Çatal Hüyük (~ 7000 a.C.):
... parece ter-se perdido aquele traço artístico, e vemos maiores semelhanças com o registo indiano, talvez precursor de Mohenjo-daro.
E já falámos de Gobekli-tepe um registo fora da habitual cronologia....
Ainda na zona europeia são de referir as inscrições noruguesas em Alta, embora mais recentes (~ 4000 a. C.).

Fora da zona europeia, são razoavelmente conhecidos outros registos de pinturas rupestres:



  • Serra da Capivara (Brasil), 
  • Entre os bosquímanos (África)
  • Entre os aborígenes (Australia)


  • __________________________________
    Notas adicionais [4/5/2013]

    1ª) As figuras na Serra da Capivara, encontrei-as pela primeira vez nestes posts do Portugalliae:
    que evidenciam alguma semelhança no estilo com estas pinturas indianas, dos bosquímanos, do Sahara, ou dos aborígenes.

    2ª) Este artigo pode ainda ligar com a questão da mobilidade humana, nomeadamente com a constatação de que a ligação na plataforma euro-asiática poderia ser feita, a pé, de uma ponta na Ásia à outra na Europa, em menos de um ano, por rotas seguras. 
    Acresce que a distância entre os locais ibéricos, e do sul de França, envolve distâncias que normalmente se fariam a pé no espaço de uma semana, e havendo contemporaneidade indicia tratar-se de uma mesma comunidade, ou no mínimo de comunidades que estavam em grande contacto.

    segunda-feira, 25 de março de 2013

    Hélgia (4)


    - Gostava de voltar à história do Joãozinho...
    - O quê?
    - Pode parecer estranho, mas devemos voltar a essa história. Quem a inventou, como exemplo, deixou o rapaz numa situação atroz... ferido e sem ajuda.
    - Só podes estar a gozar...
    - Não estou. 
    - Fui eu que fiz a história, e não vejo por que razão havia de continuar, ou dar-lhe outro desfecho.
    - É aí que eu quero chegar. Quem ficou confortável com esse desfecho?
    - A mim não me afecta minimamente, era uma situação hipotética.
    - Não sei até que ponto o era... ou seja, havia ou não contornos de verosimilidade?
    - Que diferença isso faz? Não tem nenhum correspondente real.
    - Será que não tem?
    - Onde queres chegar?
    - A questão é que a história é banal, mas corresponde de certa forma a um medo, a uma invocação de injustiça em situações reais. Quanto mais verosímil for uma história, maior é a possibilidade de despertar um medo real.
    - Sim, aquela e mais umas quinhentas semelhantes...
    - Correcto. A questão é - consegues combater o Leviatã gerado pelo conjunto de medos fabricados pelas diversas histórias?
    - Bom, a começar terias que começar por combater o medo gerado pela morte... ou pelo sofrimento.
    - Sim, terias que partir para noções abstractas, e não resolver pontualmente o problema deste ou daquele Joãozinho. Ao contrário do que é habitual remeter, a questão não está no personagem, na sua "culpa" para se colocar numa situação desfavorável. Isso é uma maneira de mascarar o problema...
    - Estamos de acordo, um outro enquadramento poderia levar ao mesmo tipo de "desgraça"...
    - Temos um Joãozinho a sofrer e sem ajuda... onde está o problema, o desconforto que a história induz?
    - A possibilidade de isso ocorrer a qualquer um de nós?
    - Isso, e o não-desfecho... a suspensão "ad eternum" da situação.
    - Qualquer um imaginará que ele eventualmente será encontrado, e lhe será prestada ajuda.
    - Será? Ou não há aqui ninguém quem considere que ele poderá manter-se assim durante bastante tempo, ou até morrer em consequência da não assistência?
    - O que queres dizer é que ainda que pensemos num ocasional desfecho positivo, não é com isso que vamos eliminar a eventualidade de desfecho negativo, certo?
    - Certo! 
    - E daí?
    - Daí, isso induz um medo, uma situação de injustiça, e um sentimento de revolta circunstancial, pela nossa impotência em tais situações.
    - E como pretendes inverter isso?
    - Há muito que foi criada uma compreensão adicional para lidar com esses medos. Os infortúnios na realidade terrena teriam uma compensação numa dimensão superior. Essa dimensão apareceu como necessária para satisfazer um balanço de equilíbrio emocional individual.
    - Wishful thinking...
    - Sim. Repara, um predador vai atacar uma presa para se alimentar... aquela e não outra. Precisará apenas de uma, circunstâncias aleatórias levam a uma escolha e não outra... uns podem ver fraqueza na presa atingida, mas é indiferente. Há sempre circunstâncias externas que determinam a escolha. A vítima não assume esse papel, há circunstâncias que o determinam.
    - Sim, por exemplo, os genes... sobrevivência dos mais fortes, mais aptos.
    - Certo. Vamos então por esse raciocínio típico. O objectivo seria produzir a espécie mais apta à sobrevivência?
    - Por que não?
    - Qual a lógica de constituir corpos frágeis, com uma morte programada?
    - Bom, porque isso é uma das facetas evolutivas. Geraram-se várias possibilidades. Maior longevidade não levava a evolução tão rápida... era injusto para os mais novos, em termos de competição.
    - Reparaste que usaste a noção de justiça? O que tem a justiça a ver com a evolução, com a competição?
    - Usei apenas alegoricamente. Uma espécie que se renove mais, produz mais soluções evolutivas.
    - Por outro lado, desperdiça as que já tem por simples limitação do tempo de vida.
    - Desperdiça os indivíduos, não os elementos da espécie... uns substituem os outros.
    - Sim, e o que os distingue funcionalmente, sem ser a sua adaptação genética a um contexto particular?
    - Os seus genes "vencedores" acabaram por ser resultado desse contexto, conforme disseste.
    - Ok. Podemos concluir que uma espécie de sucesso seria aquela que se adaptasse a uma maior variedade de contextos, por mais adversos?
    - Sim, a que conseguisse sobreviver na maior multiplicidade de contextos.
    - Acabou por ocorrer isso com a espécie humana... teve a capacidade de sobreviver nos mais diferentes contextos.
    - No entanto, continua frágil a uma grande multiplicidade de ameaças. Nomeadamente tem em si própria a maior ameaça.
    - Como todas as espécies de sucesso... muitas vezes evoluiram por competição interna. Eu sei onde queres chegar, mas não é apenas uma questão genética, é agora também uma questão cultural. 
    - Exacto. Para além da transmissão genética, é mais importante a questão educacional, cultural, o legado da tribo... 
    - Sim, no plano da realidade terrestre é isso que conta. Uma tribo fraca, com pruridos éticos, arrisca a extinção pura e simples.
    - Mas necessita da colaboração, porque foi essa colaboração comunitária que lhe permitiu desenvolver a sua cultura.
    - E daí? Conforme já dissemos, as elites aproveitaram-se da colaboração transparente, mas foram eficazmente opacas às massas servidoras.
    - Mas, ainda que tenham tentado algum ecletismo, não constituiram nova espécie. Aliás, se é fácil encontrar espécies animais diferentes, por simples isolamento territorial, isso não tem registo humano semelhante.
    - Não houve tempo...
    - Ok. E qual seria então a nova evolução, a qualidade extra, que determinaria a nova espécie?
    - Sei lá, isso é genético... uma melhor cognição?
    - Exacto, isso é genético. Geneticamente nós não interferimos, podemos fazer castas, mas não determinamos espécies. As informações que dispomos é que isso nem sequer tem resultado mesmo com canídeos... com trabalhadas selecções de raça.
    - E esse processo foi bem apurado, imagine-se o tempo e provável ineficácia em humanos. A contrario, a dar-se alguma alteração genética seria sobre os que sofrem mais provações, pois é aí que a melhor adaptação cognitiva, em condições muito adversas, levaria a aparecer alguém mais dotado cognitivamente.
    - Onde queres chegar?
    - Quero retirar de discussão a ilusão do "superhomem" lançada por Nietzche, e alguma filosofia de eugenia, que sabemos florescer nos cantos obscuros, nomeadamente na "engenharia genética". 
    - Porquê?
    - Porque é ridícula, em vários aspectos. Primeiro, porque há vantagens na imperfeição... e a história do Joãozinho é boa para ilustrar isso.
    - Porque o Joãozinho não teria lugar nessa sociedade?
    - Em parte. Uma sociedade que não admite erros, não percebe o que isso acarreta. Não sabe o que é a completa previsibilidade, e só por isso a procura desalmadamente.
    - Sim, quanto melhor modelarmos o exterior, mais nos identificamos com ele. Passamos a depender da imprevisibilidade dos nossos semelhantes para nos surpreendermos. Não é à toa que a sociedade humana se tornou introspectiva, e as notícias que mais nos apoquentam dizem respeito a questões sociais. As catástrofes naturais assolam uns poucos, face à quantidade afectada pelo resultante de acções humanas.
    - Onde entra aí o Joãozinho?
    - O Joãozinho entra na obstinação. Uma sociedade obstinada na individualidade não envia auxílio. Cada indivíduo saberia isso. Saberia que estava por sua conta própria, esse seria um medo induzido. Ninguém esperaria outra coisa dos seus semelhantes.
    - Exacto, ao contrário do que se faz passar, o medo nunca deve ser reportado à existência de um tipo perigoso, ou de um grupo perigoso. Mesmo que eles não existam, podem existir, e o medo estará presente. A questão que se coloca é saber se a sociedade criada gera ou não, com facilidade, indivíduos ou grupos perigosos. O medo é resultado dessa estrutura social e não dos indivíduos.
    - Pois, um dos problemas está nessa individualização. Quando se estimulam vantagens egocentricas, o indivíduo irá agir nessa lógica, numa lógica de protagonismo. Isso será sempre instável, porque vendo vantagens individuais, cada um, ou em grupo, procurarão afirmar-se comunitariamente por oposição aos outros, ou pelo menos em competição contra eles. Quanto maior for o valor dado ao ídolo, maior será a vontade de o imitar ou suplantar.
    - O sucesso é uma palavra com sucessor...
    - Sim, não pára, entra numa lógica de instabilidade social difícil de contrariar. A motivação de aperfeiçoamento deve ser inata, e feita no confronto do próprio com os seus limites. Se for vista numa lógica de confronto com adversários, esgota o seu campo de acção em alguém, e não é claro que vá além disso, porque o objectivo proposto foi alcançado.
    - Regressando, a questão mais importante na história do Joãozinho é outra... a questão mais importante é colocar a separação entre perfeição e a entrada do caos.
    - Entrada do caos?
    - Sim, num mundo ordenado, previsível, a morte poderia não colocar um fim ao triste fado do Joãozinho. Ele poderia ser levado a nova dimensão, onde de novo seria alvo de injustiça "eterna". Só o efeito compensatório da imprevisibilidade o poderia libertar de tal sina.
    - Claro, a idealização de uma eterna perfeição obriga, por lógica de raciocínio, lógica de máquina, a conceber o seu oposto, eterna imperfeição.
    - Isso. Uma idealização de bem absoluto traz obrigatoriamente, por efeito automático, uma idealização de mal absoluto. Porém, sabemos que as chances de tudo correr mal, acabam, na soma dos tempos, a compensar com as chances de tudo correr bem. No registo de probabilidades não há uma tendência a um desequilíbrio perene.
    - Ok... mas isso implica ir para dimensões superiores - divinas.
    - Sim, mas o destino do Joãozinho acaba por estar na mente dos autores da sua história. A maioria dos leitores quereria, na sequela, compensar o Joãozinho pelo seu destino nefasto. Tal como a maioria das crianças quereria que alguma vez o Calimero não fosse injustiçado. A persistência do autor na injustiça é resultado de lógicas próprias, e ainda que fosse vício torturante do autor, seria mais despertar um problema de medos. Foi-se ao limite, ao ponto de máquina, de infalibilidade e intolerância, para consistência do desfecho. Isso não é um problema humano... ou aliás, só é um problema quando os humanos querem encarnar atitudes de consistência limite, próprias das máquinas, ou de deuses infalíveis e insensíveis.
    - Aquilo que dizes, é que não é nenhuma ordem que traz o garante de justiça, mas sim o caos.
    - Sim, porque é a imprevisibilidade que leva à abstracção de justiça. Quem fizer leis acaba por contemplar a possibilidade de ser uma vítima da sua aplicação. Isso só acontece por aceitar a imprevisibilidade. É ainda a imprevisibilidade que nos faz pensar que podemos ficar no lugar do outro, que nos obriga a essa reflexão.
    - Não é só isso, ainda que haja uma justiça enquadrada na ordem, sobrepõem-se a ela as alterações aleatórias que emanam do caos. 
    - Falas da situação limite pitagórica, em que o indivíduo é um espectador do "filme da vida". Acaba por ser sujeito a um conjunto de tragédias e comédias, de forma semi-aleatória, mas que se compensariam na soma dos tempos.
    - Exacto. Com uma ordenação, uma decisão divina, não poluída por factores aleatórios, haveria almas condenadas eternamente ao bem ou ao mal. Isso levou às noções clássicas de paraíso e inferno... uma pequena experiência terrena teria estranhamente implicações irreversíveis para a eternidade. 
    - Claro, esse seria um erro de Úrano e Zeus face a Gaia. A componente aleatória não pode ser ocultada da luz. Há uma ordem que nos dá previsibilidade, mas igualmente importante é o que escapa a essa ordem, que nos oferece a imprevisibilidade. A ordem deve acima de tudo estar no nosso raciocínio para podermos enquadrar a desordem que nos é oferecida pelos "filmes da vida".
    - Caso contrário, ficaríamos máquinas alimentadas por sensações enfadonhas, previstas, que nada trariam de novo ao nosso entendimento. A surpresa é essencial na nossa essência... simplesmente somos produtos do caos e não de uma ordem simplificada. Quem encarna posições irredutíveis, aproxima-se de várias operações lógicas, previstas teoricamente, mas que pouco têm de humano. Insere-se enfadonhamente num mundo ordenado, mas ficará completamente desorientado quando o caos começar a afectar a ordem instituída, por necessidade de alguma pimenta na "alimentação".
    - Nota ainda que é algo surpreendente que o Pi, o número que define a relação com o círculo, tenha uma sequência de dígitos que é um modelo de aleatoriedade, imprevisibilidade. O círculo, modelo de equidade, equilíbrio, tem no seu número de referência uma sucessão de dígitos de cariz aleatório.
    - É assim, o Eu é convidado pelo Não-Eu para uma dança. Ficar sentado não é bem opção, a menos de isolamento, arriscando ficar agarrado a um boneco. O boneco pode até responder como queremos, não nos pisar os calos, mas saberemos mais tarde ou mais cedo que escolhemos ficar com bonecos. 
    - A cada caminho determinado num sentido, feito solitariamente pelo Eu, o Não-Eu tende a responder da mesma forma, com um caminho em sentido oposto, igualmente determinado. Nenhum entra na dança, cada um segue o seu caminho isoladamente, ou em rota de colisão. 
    - Deixa-me mandar uma piada. Se a Montanha do Não-Eu julga que pariu um rato, um rato (com grande ego) julgará que defecou uma montanha. 
    - É a relatividade, no seu sentido mais puro...
    - Saber dançar, é saber conduzir e ser conduzido no confronto da nossa vivência com os outros. Se impor uma condução torna os outros em bonecos, aceitar a completa condução dos outros levar-nos-à posição de bonecos.
    - Se estamos atados à condição material de espectadores do "filme da vida", ninguém nos pode impôr que o apreciemos. O máximo que nos pode ser exigido (digamos, por Gaia) é que o critiquemos de forma racional, sinceramente e com uma compreensão abrangente (digamos, o caminho de Maia).


    Massive Attack - Unfinished Sympathy

    quarta-feira, 20 de março de 2013

    Boa notícia

    Não é habitual comentar aqui assuntos de actualidade. No entanto, pela parte da Igreja tem havido notícias de grande importância, e seria quase desapropriado não as mencionar.
    Primeiro, a resignação de Bento XVI, a 11 de Fevereiro de 2013, um acto de consciência humana, e certamente de reflexão filosófica, que é um sinal de humildade, de vitória do espírito racional perante a formalidade da execução de um cargo. 
    Depois, a eleição do Papa Francisco, que desde a sua atribuição tem enviado vários sinais de vontade de mudança. E quando as coisas não estão bem, toda a vontade de o fazer tão rapidamente quanto possível, só pode ser saudada. 
    Foi assim, com alguma surpresa positiva, que li esta notícia no Público:
    O Papa Francisco apelou aos membros de todas as religiões e a todos aqueles que não pertencem a nenhuma Igreja para se unirem na defesa da justiça, da paz e do ambiente, e para não permitirem que o valor de uma pessoa seja reduzido “ao que essa pessoa produz e consome”.
    Francisco, eleito na semana passada como o primeiro Papa não europeu dos últimos 1300 anos, encontrou-se nesta quarta-feira não só com líderes de Igrejas cristãs não católicas (ortodoxos, anglicanos, luteranos e metodistas), mas também com judeus, muçulmanos, budistas e hindus.
    “A Igreja Católica está consciente da importância de aprofundar o respeito pela amizade entre homens e mulheres de diferentes tradições religiosas”
    Um bom sinal de esperança no entendimento de toda a humanidade. 

    segunda-feira, 18 de março de 2013

    Hélgia (3)


    - Portanto, a situação é a seguinte. Desenvolvemos separadamente várias linguagens, e praticamente todas levaram a conceitos abstractos semelhantes. Não exactamente iguais, porque evoluiram a partir de tradições diferentes, mas há correspondentes, há traduções.
    - E o mito de Babel? De uma língua única, que se confundiu?
    - Pois, não sei, é um pouco indiferente, depois cada um assumiu os seus partos...
    - ... ou os seus medos.
    - ... ou os seus caldeus - essa piada não está já gasta?
    - Depende do canto, das áreas, ou melhor, dos árias... do povo que se espalhou por várias áreas, levando os seus carneiros, os seus Aries. A sua castidade, a sua pirâmide de castas, remeteu outros à condição de escravos. Se havia deuses, eles quiseram imitá-los, quiseram ser invisíveis e condicionar a estrutura social pelo topo.
    - Estás-te a referir à maçonaria?
    - Será uma face mais visível dessa pirâmide de influências, que também já teve expressão nas castas da nobreza. Nobre, não obre... era esse o seu mote, até há pouco tempo era poluto a um nobre trabalhar.
    - Também na religião...
    - Sim, também aí foi e é visível. Mas se a pirâmide de Babel subiu alto, ao ponto de se não lhe ver o topo, também foi a gravidade imposta, que a fez cair. Porque quando se acumula muita massa, só lhe percebemos o peso quando o imposto for grave... e aí temos a queda dos graves.
    - Isso também tem um significado económico!
    - Tem, mas essa multiplicidade de significados foi em parte feita pelos próprios, para benefício da sua comunicação em código. Sabes, um crédito passa a dívida com a simples mudança de sinal. É só um sinal...
    - Seria grave...
    - Nem por isso. Vê os desvios que foram feitos. A etiqueta usou os nomes como etiqueta do corpo. Quis dar importância ao nome em vez de dar importância à palavra, porque lhes custava a lavra da cultura. Usou escravos (os cravos), usou servos, que precisam agora de "ser voz", de ser vós. Um simples nome serviria de chave, e não o texto. Porém a clave de sol apenas dá início à partitura, sem as notas seguintes não há música. E essas notas é que são as verdadeiras notas...
    - Sim, mas o que é então a noção hélgia? Um nome?
    - Não... é a palavra que falta.
    - O quê?
    - A questão é que não sei se falta alguma palavra para comunicarmos. Aparentemente não.
    - Mas aparecem palavras, noções novas, frequentemente, até pelos avanços tecnológicos, pelo desenvolvimento de novas teorias, etc...
    - Ok. No entanto, não é isso. É claro que se virmos um novo animal lhe devemos dar uma nova designação, o mesmo se passando com objectos, etc... A questão é do ponto de vista de conceitos abstractos, não ligados aos sentidos. Usamos uns milhares de palavras, mas também poderíamos usar apenas algumas centenas, bastaria racionalizar e evitar sinónimos. Os novos conceitos são explicados através de palavras já existentes, alguma vez precisaram de palavras inexistentes? Ou seja, há muito as línguas chegaram a um ponto de serem autossuficientes. Conseguem explicar através das palavras que já existem os novos conceitos.
    - O que queres dizer é que a partir da infância, em que aprendemos o essencial, depois basta um dicionário e uma explicação clara.
    - Isso! Agora a questão que coloquei, há bastante tempo atrás, seria a de saber se uma comunidade poderia ir mais longe. 
    - Uma comunidade?
    - Sim, sozinho não se consegue desenvolver linguagem. Precisamos dos outros para aferir se esses conceitos têm existência nalguma realidade abstracta partilhada. A realidade individual, dessa dá conta o próprio por completo. A linguagem é uma experiência comunitária e para ser explorada por completo deve envolver todos. 
    - A noção hélgia seria a palavra que faltava, ou o desenvolvimento de nova linguagem?
    - Pouco importa, provavelmente será antes a palavra que falta para indicar que não nos faltam palavras.
    - Posso-me juntar ao pessoal da lavra?
    - Claro...
    - Aquela história do vídeo com a mudança da rotação da Terra... era por causa do trânsito de Júpiter?
    - Olha, olha, ficou preocupado!
    - Vocês é que andam a apoquentar...
    - Quem? Só se for quem quer ser apoquentado, ou quem apoquenta.
    - Aquilo foi uma brincadeira... bom, ou talvez não! Depende do crédito que deres a registos antigos sobre mudança da rotação da Terra. Vê aqui este texto. Segundo indianos, gregos, mexicanos, egípcios, houve quatro mudanças do sentido da rotação da Terra. Certamente que o teu positivismo científico não foi beliscado por este negativismo místico de abelhudos maias... n'est pas?
    - Ah! Ah! Ah! 
    - Acho que ele ficou preocupado, ficou.
    - Não vejo porquê... ele tem a convicção da ordem que não se deixa poluir pelo caos. As leis todas escritas, não é? Confiança, só se for com fiança. Eh! Eh!
    - Há leis físicas, sabiam...
    - Claro que há... são a parte da previsibilidade que nos conforta. Mas também há a imprevisibilidade que nos diverte... ou apoquenta, depende da tolerância e dos medos. Se conseguisses meter o universo inteiro nas leis, em que universo se teriam escrito essas leis?
    - Não sei, mas podemos verificá-las experimentalmente.
    - Achas que por algumas coisas funcionarem hoje como um relógio, a corda não tem princípio nem fim... ou que não há desacertos?
    - Não é só isso, o empirismo dele é útil, mas não é autossuficiente. Deduz leis, mas não consegue mostrar a razão delas existirem. Mede a constante de gravitação, mas só à força de uma fé, que repudia na religião, pode dizer que aquele valor foi, é, e será constante.
    - Sim, imagina que o peso que o Sísifo teve que suportar adicionalmente foi um peso adicional no seu corpo, por simples aumento da constante de gravitação?
    - Lá estão vocês com os mitos. Nesse caso teria sido ele e todos os outros... ou os outros continuavam aos saltos na Lua?
    - Queres falar sobre a Lua? Sobre as fotos?
    - Não, vocês estão sempre a gozar, e eu nem sei o que estou aqui a fazer...
    - Não te furtarás... 
    - Mas estou-me a fartar, vou-me embora.
    - Ninguém te está a atar. Tu é que gostas de lavrar em ata (aqui dá jeito usar o novo acordo, eh! eh!).

     
    The Verve - Bitter sweet symphony

    domingo, 17 de março de 2013

    Hélgia (2)


    Sem travessão, fala-vos o narrador, um mensageiro que é usado para fazer uma ponte entre o leitor e os personagens, servindo na maioria dos casos para descrever o contexto. Há confusões entre o narrador e o autor, porque a sociedade individualizou-se, fragmentou-se numa análise caótica dos seus propósitos, da sua razão de ser, e a síntese que foi fazendo foi a da castidade dos propósitos. As castas não englobaram o todo, e nessa síntese deficiente criaram novos fragmentos, novos gastos dos castos. Se em última análise, ninguém é culpado do que é, também ninguém pode esperar passar entre os pingos da chuva sem se molhar. Resultado da crescente cultura individualista, do convívio de egocentrimos, é dada demasiada importância à autoria, esquecendo a mensagem. O narrador faz parte da mensagem, o autor desliga-se dela, acabada a obra, a menos que decida fazer reedições. O nome do autor não é mais do que uma etiqueta, que poderá servir como palavra-chave para textos similares, ou para um aprofundamento do contexto que rodeou a obra, através de críticas integradoras, ou biografias.
    Entra agora o narrador para explicar a sua inutilidade neste texto. Levado a encenação teatral, o encenador poderia simplesmente optar por colocar palavras iluminadas sobre uma parede negra, mas também teria liberdade para decidir o número de actores e atribuir-lhes as frases que quisesse. Pode, e é, em certa medida, um monólogo... mas esse contexto introspectivo, ou de simples discussão entre dois ou três personagens, seria claramente deficiente.
    Após esta pausa, reentram os personagens.

    - A figura dos biliões de gaivotas é a da expansão das ideias. As associações formaram-se automaticamente gerando todo o universo, formado por instâncias de si mesmo... porque não pode haver outra atomicidade. O átomo é todo o universo. Só que, claro, há diversos níveis de associação que geraram a complexidade.
    - O átomo é todo o tomo, todos os livros, todas as ideias, o todo...
    - Isso! Se quiseres é o A-tomo... mas também o Z-tomo.
    - Não seria Omega-tomo?... e não é uma gaivota, é outro pássaro na canção da Laurie Anderson.
    - O que é que esse detalhe muda? Para mim, a Gaia vota, e por isso escolho a gaivota.
    - Olha, olha, as abelhas Maias, ou são tarantólogas? 
    - Para ti, a conjugação do verbo ouvir na tua pessoa, é ouço, do meu osso. 
    - Já sei que me julgas serpente rastejante, sem coluna vertebral, mas afinal não foi essa que nos ofereceu o conhecimento?
    - E conhecimento sem compreensão pode ser perigoso... pode ser como colocar armas em mãos de crianças. Porque o problema é que há conhecimento científico letal à disposição de pessoal com compreensão de crianças, mas que se julgam adultos responsáveis.
    - Conclui-se que me achas mesmo serpente rastejante... eh! eh!
    - Sabes que não é isso. Se assim fosse, diria que a conjugação não era "ouço", era "ouvo", do ovo da serpente. Simplesmente os qualificativos insultuosos não trazem nada de novo. Usam-se outros de resposta, e começamos a dança. Ora, como sabes, não aprecio essa coreografia programada, mas sei que faz parte de rituais de acasalamento.
    - Ui, ui! Já estão a desatinar? Já chegaram há muito tempo?
    - Nem por isso... estamos a chagar, depois havemos de lá chegar.
    - A cura das chagas... faz parte, faz parte!
    - Estava aqui a pensar na questão dos cortes... Podemos pensar que, na mitologia grega, se Gaia representa as ideias vindas no caos universal, Úrano poderia representar a sua associação ordenada. Cronos/Saturno seria então uma opção de eliminação em linha contínua temporal. Ou seja, o corte de Cronos (o corte dos cornos... eh eh), seria uma opção pelo esquecimento do passado e imprevisibilidade do futuro.
    - Vocês falam disso como se esses deuses tivessem mesmo existido! Que tourada...
    - Ninguém disse isso, nem o contrário. Não estás a ver um boi... O que estamos a ver é que parece haver uma racionalidade profunda nos mitos antigos. Chegámos lá doutra forma, mas também com ajuda dessas ideias antigas.
    - Sim, há diversos níveis nos panteões divinos, mas há uma lógica emanescente. Mais notável, essa lógica parece ter-se codificado na linguagem, de forma algo inconsciente.
    - A começar, a que treta é que vocês chamam "Maia"?
    - Já lá vamos, estávamos ainda em Gaia, a chegar à Raia. Eu diria que Raia é a fronteira de Gaia definida pelo corte de Cronos. Raia seriam todas as ideias no presente, incluem memória do passado, e modelação do futuro, mas ambas imprecisas. É um presente que é um pré-sente, não sente tudo, mas também não é apenas uma fotografia sem movimento. O corte terá pelo menos três camadas. A do instante presente, a da memória passada, e a da modelação que pode prever algo do futuro.
    - Sim, e o corte de Cronos tem a memória, uma parte mecânica, instintiva, que modelaria o futuro, por exemplo, para efeitos de locomoção animal.
    - Mas não tem a compreensão interna das ideias...
    - Exacto, isso só vem com Zeus. Porque o corte de Cronos gera novas ideias, relacionadas com a limitação temporal. Se a ordenação de Úrano deixou fora da luz do conhecimento muitas ideias caóticas, o corte de Cronos, ao rasgar um curso do tempo, gera novas ideias, ao mesmo tempo que remete outras para o esquecimento. 
    - Pelo que entendo, há assim diversas formas de luz. Primeiro, Úrano só traz à luz o que está ordenado, depois Cronos limita a luz ao presente, que inclui a adição de memória e previsibilidade futura parcial.
    - E o que fez Cronos com as novas ideias, geradas pelo seu corte?
    - Engoliu-as!... Por isso a questão mitológica de engolir os filhos - a personificação das novas ideias que tinha criado pelo corte temporal.
    - Só com Zeus é que teremos uma inclusão dessas novas ideias, podemos ver aí uma nova luz.
    - Mas também novas trevas... já dentro do corte temporal de Cronos há umas ideias que não queremos ter, mas outras são aprazíveis. A divisão entre bem e mal começará com Zeus, vai para além do que é caos e o que é ordem, na original divisão de Úrano.
    - Não esquecer que a mãe Raia dá a Zeus, o quê? Raios...
    - Sim, o corte do tempo na posse de Zeus, será depois o do tempo atmosférico. Este ioga da joga de palavras, é lixado...
    - Resta saber se não é autoformado... porque a questão é sempre a mesma, de onde aparece a inspiração que leva ao pensamento, que leva à acção. Mesmo tratando-se de deuses pensantes, uma sua escolha teria origem nas musas, que bebem do caos a inspiração que enviam.
    - Depois há ainda a questão das dimensões espaciais... serem apenas três.
    - Antes disso, antes disso... não me responderam sobre a Maia!
    - Ok. Aliás, OK Curral... mas depois a gente brinca. Zeus aparece com Hera, e as Eras são um corte histórico, as heras apagam o registo humano, etc. Isso pelo lado grego. Pelo lado romano, temos Juno associada às nuvens, enquanto que Júpiter se mantém associado a raios e tempestades. As nuvens dão chuva, mas também tapam a luz. Ou seja, identifica-se assim mais um problema... a oclusão histórica, eventualmente pela escolha do passado "conveniente", na tal ideia de bem/mal, ou céu/inferno.
    - Sim, pela falta de compreensão, houve ideias que foram suprimidas. Foi ajustado um passado histórico que até encaixava numa certa ordem... mas Gaia não esquece os seus filhos do Caos, que caíram fora da hierarquia da ordem.
    - Maia representa assim o encaixe de tudo, o caminho para o conhecimento completo de Gaia. Será de Maia, reprimida, que nascem os humanos. Já não são deuses. Porque os deuses são imortais, não conhecem a real perspectiva da mortalidade, da finitude, essas novas ideias apareceram com os homens. Por isso, os humanos e Prometeu foram tão mal tratados... porque a solução completa não está na mão dos deuses, porque há ideias que eles já não podem ter - por exemplo, a da mortalidade.
    - Espera aí... Maia não aparece assim na mitologia.
    - Eu sei, mas quem disse que a história tinha acabado? Ainda nem falámos dos 12 signos, das 12 horas, que às 13 voltam a apontar para o 1. Não foste tu que falaste da tarantóloga? Olha, não fui eu que inventei estas coisas, apenas estou a tentar juntar as peças.
    - E por falar nisso, a da profecia dos Maias, falava especificamente no dia, ou no ano? O ano já acabou? Já lhe contaste do trânsito de Júpiter por Touro, e da passagem pela Nebulosa de Cancer, na altura do solstício de Verão de 2013?
    - Eu não ligo muito a isso, sabes bem... mas também é verdade que há uma série de coincidências que têm sido difíceis de encaixar como tal.
    - Espera lá. Estás a dizer que são os humanos que têm que resolver um problema divino?
    - Fala-lhe das dimensões... ele não está a ver o filme 4D.
    - Sobre o 4D não há muito a dizer... Cada dimensão 3D é como uma folha de papel em dimensão 4D. Um ser 4D pode fazer uns bonecos 3D para se divertir, tal como uma criança faz um boneco numa folha de papel. O problema é que em 2D não há vida, em 3D aparece... e não são animaizinhos.
    - Na perspectiva de deuses podem ser vistos como animaizinhos...
    - Ou seja, se quiseres, numa perspectiva 4D, os animaizinhos estariam num aquário 3D a serem observados, como num écran de computador. Mas vêem mesmo tudo, da mesma forma que nós vemos um boneco 2D por completo no seu interior. Ora acontece que os humanos têm a possibilidade de se verem a si próprios... para além do corpo, no campo das ideias. Porque tudo, tudo são ideias. Ou seja, pelo menos alguns humanos podem ter uma dimensão para além da material, em 3D. Deixaram de ser bonequinhos... têm a alma. E ainda que se desprenda desta parte 3D, pode ter lugar aí, na parte do raciocínio que nos permite ver a nós próprios, e que estará nessa dimensão superior, digamos 4D.
    - Estás a ver, isto enquadra aquela noção de almas que vão para o céu... escolhidas pelos que se portaram bem, ou para o inferno, para os que se portaram mal. Passamos para guerras em dimensões superiores.
    - Pois, mas eu creio que isso já foi tudo resolvido, se Gaia considerar que pelo caminho de Maia, os humanos vão finalmente ter a potencialidade de trazer luz a todas as ideias. Repara, esta questão da personificação, estou-me a borrifar para saber se é real ou não. A realidade é algo diferente do que se julga, é essencialmente uma sincronização para uma verdade. Cada um tem ideias próprias, sonhos, mas conjugam-se todos num mesmo campo, na realidade da Terra. E a questão da relatividade é uma meia-idiotice. A relatividade estabelece-se entre duas coisas, não entre múltiplas coisas. Quando há múltiplas coisas, tem que haver um sincronismo, um referencial.
    - Sim, nota que o mundo material nunca seria suficiente para encaixar e explicar o espírito humano.
    - Em nenhuma dimensão... porque as coisas não param necessariamente a 4D, 5D, ou o que for...
    - Não o vamos assustar com os mergulhos em Neptuno?
    - Que história é essa?
    - Para já é uma brincadeira... repara, grande parte das restrições foram questões parvas de medos incutidos. Se houve intervenção divina... não foi por mal. Pensa nos deuses como crianças que têem um poder, uma sabedoria, infindável, mas... não têm necessariamente superior compreensão. De acordo com as mitologias, os deuses não poderiam ser mortos, mas aprisionados. Ser aprisionado eternamente... é como ser comido vivo, mete medo. Ficariam eventualmente condenados à Montanha de Sísifo... 
    - Sim, é uma estorieta engraçada, e daí?
    - Daí, que no mundo ordenado gerado por Úrano, em Gaia, há agentes "caóticos"... os tais que não viram a luz, e que surgem como monstros, mesmo para deuses, em dimensões superiores. Repara que um ser em 3D pode ser aprisionado num aquário tal como uma formiga, que se move em 2D, pode ser limitada por um copo que a aprisiona. Isto é válido em qualquer dimensão...
    - Daí o mandamento por via do ioga - "não me atarás"... "não matarás".
    - Só para dizer que há uma sequência que sempre me intrigou. Pelo lado dos planetas, Úrano, Saturno, Júpiter, que está na ordem mitológica correcta. Acima de Úrano, temos Neptuno, o deus dos mares. Mas não é dos mares terrenos que falamos. Os problemas teriam-nos sidos colocados na Terra para que pudessemos resolver conflitos a nível superior, por causa da nossa elevada compreensão. A nossa escassa memória obrigou-nos a deduções notáveis com pouca informação. Nesse sentido a autorização para chegar à América seria como gratificação divina da resolução do problema dos mares de um Neptuno de dimensão muito superior. É o Neptuno do caos, que ficou fora da ordenação de Úrano, era esse Neptuno que Gaia exigiria que fosse conhecido.
    - Esta é uma história de várias camadas... própria do Cebolinha!
    - Já agora, digo-lhe a outra...
    - Tem mais? Vocês têm imaginação, pelo menos!
    - A seguir a Júpiter vem o quê?
    - Na aproximação à Terra, Marte.
    - Amar-te em Marte, é para depois... eh! eh! Antes disso, temos a cintura de asteróides. É como se houvesse uma repartição altamente estranha, e potencialmente ultra-instável, de corpos celestes. Pode ser um convívio pacífico de corpos celestes, ou pode descambar em carambolada marciana.
    - Sim, e pelo lado do Sol... temos Mercúrio-Hermes e Vénus-Afrodite, que anunciam a alvorada. Hermes é o mensageiro, filho de Maia, mas também foi visto como Cupido filho de Vénus, que pode ser associada a Maia.
    - Daí a mensagem...
    - Qual mensagem? Tudo isso não passam de associações mirabolantes, algumas coincidências, e muita imaginação.
    - Claro que sim!
    - Óbvio, não se está a ver?... depois falamos!
    - Ainda tem mais?


    David Guetta - Little Bad Girl feat. Taio Cruz

    sábado, 16 de março de 2013

    Hélgia (1)

    - Hélgia... seis letras que, ao que parece, nunca foram escritas.
    - Sim, e quantas letras juntas ganharam o estatuto de serem tidas como palavras?
    - Elegia, elegia é uma palavra bem conhecida.
    - Eu sei, mas não é elegia, é da noção hélgia que falamos.
    - Olha, uma tem mais de 2 milhões de ocorrências, a outra acho que nunca foi escrita na internet.
    - Esperem. Quantos estamos aqui a falar?
    - Isso importa?... acho que não!
    - O pessoal normalmente não se afasta muito do que foi feito antes... seguem o trilho na floresta de enganos.
    - Quem disse isso? Se cada um se pusesse a inventar palavras, não nos entenderíamos.
    - Pois, e quem inventou estas que usamos?
    - Já perdi a conta, quantos somos nesta conversa?
    - Estás a falar da invenção do significado, do som, ou da sua escrita?
    - Estou a falar mais sobre o significado... acho que é isso que distingue um conjunto de caracteres, ou de fonemas, de uma palavra.
    - Até porque apesar das múltiplas línguas, aparecem as mesmas palavras, ou semelhantes.
    - É pá... lavra, não vês que é cultura, é lavra a palavra.
    - Entramos na joga do ioga...
    - Quantos somos aqui, afinal?
    - Que é que isso interessa? Olha, pergunta ao autor!
    - Podemos falar com o autor? Um personagem pode falar com o autor?
    - Acho que não é conveniente... imagina o que os personagens de uma tragédia lhe queriam dizer, ou fazer!
    - Crucificá-lo? Bom, mas não apenas ao autor, também aos leitores, que os obrigam vezes sem conta a reviver esses dramas.
    - Que estupidez! Os personagens não sentem!
    - Não? De quem são os risos, as lágrimas, as emoções, que os personagens invocam no leitor? Não é algo que o leitor (ou espectador) esteja a sentir no seu corpo. O cérebro do leitor serve de "máquina" para reviver as aventuras e desventuras do personagem.
    - Percebi... e quando o leitor "encarna" no personagem as emoções não são apenas suas, são emprestadas por esse personagem, pelos seus sentimentos no enquadramento.
    - Sim, no processo de leitura o leitor reserva uma parte do seu cérebro para se colocar na posição do personagem. Desliga-se mais ou menos dele... pode colocar-se sempre na posição superior, em que tem o conhecimento dos diversos fados. Porém, quando quer interpretar o sentimento do personagem, o leitor assume as suas dores, torna-se numa sua réplica... ainda que não exactamente igual, pois o autor teria um propósito, um contexto, e diversos leitores, ou o mesmo leitor numa releitura, terão outro.
    - Continuo a achar que é uma estupidez... vejam esta história: "O Joãozinho era um rapaz infeliz, órfão, sem amigos, ia a passear pela floresta, caiu e partiu uma perna. Ficou a sofrer sem que ninguém se preocupasse com ele." Pronto, já está. Vão-me dizer que este Joãozinho existe?
    - Passou a existir... a partir do momento em que contaste essa história.
    - Ah! Eu sou o culpado da desgraça do Joãozinho... essa 'tá boa!
    - Pelo que percebi, serás tu e quem a ler a seguir. Mas o Joãozinho não será o mesmo... cada leitor terá uma imagem própria do rapaz, da floresta, etc.
    - Bom, mas acho que também tem a ver com a verosimilidade. Há histórias que nos aproximam mais da realidade do que outras. Se o Joãozinho tivesse sido atacado por um dragão perceberíamos que era uma situação de fantasia.
    - Não só. Essas situações fantásticas, hoje vistas como fantasia já foram tidas como medos reais.
    - Claro. A mensagem pode ter um propósito de incutir medos. Ao contrário, raramente vemos textos para lidar com os múltiplos medos que nos são incutidos.
    - Estamos a afastar-nos da discussão...
    - Quem disse isso?
    - Quem disse "quem disse isso?"?
    - Eh! Eh!
    - Sei lá, já se esqueceram que não temos nomes, nem sabemos quantos personagens somos?
    - Porquê?
    - Já vos disse, perguntem ao autor!
    - Mas os autores não se devem misturar com os personagens...
    - Acho que quem disse esta última foi o autor... eh eh!
    - Então, e as outras não foi?
    - Olha, olha, temos o autor entre nós! Apareceu como personagem.
    - Isso não faz sentido, se todas as frases foram escritas por ele, sempre esteve como personagem.
    - Não perceberam que as frases, as palavras, existem, independentemente de serem veículadas por um ou outro corpo? A partir do momento em que apareceu a linguagem, todas as suas combinações, todos os textos, todos os livros, ficaram potencialmente possíveis. Ou seja, já estão feitos.
    - Estás apenas a referir-te à linguagem?
    - Não, não estou.
    - Estou-te a topar... bem observado!
    - Olha, eu sinto que me estão a passar coisas ao lado.
    - Bem vindo ao clube!
    - Se é o que eu estou a pensar... grande malha da nossa Maia!
    - Tenho que ler melhor os outros textos, mas acho que estou a ver o "filme"... e que filme!
    - Não percebi nada!
    - Olha, perde aí um tempito a explicar-lhe... encontramo-nos de novo?
    - Claro, depois voltamos à conversa.

     Laurie Anderson - The Beginning of Memory

    domingo, 10 de março de 2013

    Análise, Reflexão e Síntese

    Um apontamento na sequência de um texto anterior.
    Podemos considerar três processos fundamentais na formação espontânea de conhecimento.
    A análise, que representa um corte (se quisermos entender na forma mítica, o corte adamantino de Cronos a Urano). A reflexão, que basicamente significa que há uma simetria induzida na análise (podemos ver isto na moral cristã, da reciprocidade, de que o outro e o eu são uma mesma parte de algo que os une). A síntese, que após a análise e reflexão, agrupa as novas ideias, sendo nova forma de conhecimento. Todos estes processos se sucedem, e estão sujeitos a acções intercaladas de uns e outros.
    O "conhece-te a ti mesmo" é uma análise em que o próprio "eu" está sob análise, colocando-se a um nível superior de entendimento. Por isso mesmo, pela reflexão, deve colocar-se no mesmo plano que os restantes. As conclusões que daí retira, são a síntese, que forma ideias sobre si e o que o envolve num plano superior, o que se pode entender num plano espiritual.
    Seguindo um pequeno comentário, devemos entender que a destruição é apenas uma noção abstracta, de negação da construção. A construção é a síntese, feita a partir da análise, mas essa análise, quando feita no plano de ideias nada faz desaparecer. A destruição aparece apenas como uma negação da construção, enquanto operação lógica. 
    A intensidade do que experimentamos neste processo de alternância destas três operações fundamentais, acaba por ser resultado do equilíbrio entre todas elas, sendo menos agressiva se optarmos pela chamada "via do meio", na concepção budista. É claro que se centrarmos tudo no "eu", podemos esperar uma ameaça da enorme montanha, que será o "não-eu", no sentido de Maomé, e por isso devemos defrontar os nossos medos, que não são mais do concepções abstractas, que resultam do desconhecimento dos outros, e respectiva falta de confiança.
    A maior beleza no meio deste processo que nos aparecerá como trágico, mas também feliz, é que isto é apenas uma consequência abstracta fundamental... ou seja, só será bem entendido com conhecimento, reflexão e compreensão suficientes.