terça-feira, 30 de julho de 2013

Propaganda

Poucos meses antes de morrer, Edgar Allan Poe, um ícone da literatura americana, publicou um dos seus poemas mais conhecidos:

Dream within a dream (Edgar Allan Poe, 1849)
Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow
- You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand
- How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?
Este poema foi incluído numa canção dos Propaganda - uma banda alemã dos anos 80
Propaganda - Dream within a dream 

... e o tema de "sonhos dentro de sonhos" foi explorado no filme "Inception" ("A Origem") de Christopher Nolan, lançado há três anos, em 2010. 

A tradução para português de "inception" como "origem" parece estranha, mas a própria palavra inglesa teria um significado desligado de memórias, conforme se verifica neste dicionário, e tem de facto etimologia latina que liga a "origem", ou o que seria mais apropriado "começo" ou "iniciação". 
A ligação da palavra "inception" ao implante de memórias teve origem no filme de Nolan (talvez fizesse parte de alguma "iniciação" do realizador noutras "andanças").

Tal como as memórias no filme, o termo "implantou-se", e hoje é usado em ciência... conforme se pode ver na mais recente pesquisa de Tonegawa (Nobel de Medicina, 1987):

(artigo na semana passada no Guardian, e no Público)

Talvez a primeira falsa memória em humanos seja a própria palavra "incepção"... pois dentro de alguns anos ninguém suspeitará que o termo nem sequer se aplicava a memórias, e só os mais curiosos encontrarão a "origem" da etimologia. Há "malta" que gosta de fazer piadas de puro malte connosco...

Adiante... o que liga estes temas? 
Várias coisas, apesar de um aparecer num poema do Séc. XIX, recuperado numa canção dos anos 80, outro num filme de há 3 anos, e outro numa investigação científica publicada na semana passada.
A principal razão para escrever este texto são os "Propaganda" - a canção... que ainda gosto de ouvir repetidamente, nada mais diz que o poema, e o poema também será algo ambíguo no seu propósito.

O poema de Edgar Allan Poe surge no contexto da filosofia idealista alemã e o tema da "realidade dos sonhos", ou "da realidade ser um sonho", foi algo que teve a sua repiscagem filosófica nessa época, mas que remete aos primevos pensadores gregos ou à tradição asceta indiana. 
Falar-se em "sonho dentro do sonho", em vez de "sonho", seria uma eventual novidade no poema de Poe... e no filme de Nolan vai chegar-se ao ponto de encadear mais uns níveis de "sonhos dentro de sonhos". 
Quem já teve a experiência de se beliscar num sonho, para acordar, e ao acordar continuar afinal a sonhar? Já me aconteceu, e isso não tem especial importância, mostra apenas como a nossa noção de realidade se adapta apenas ao presente, à percepção e classificação de memórias no presente.

Porém, há um ponto importantíssimo, e que não quero deixar de mencionar, sob pena de me esquecer de fazê-lo noutra ocasião... Todo o contexto pode ser modificado, e sendo colocados perante uma poderosa ilusão, há algo que não muda - as nossas convicções mais profundas. Quando bem cimentadas no "ser" têm a força de recusar e eclipsar todo um cenário inconsistente, remetendo-o a uma memória de um sonho. Existimos num contexto porque aceitamos a sua lógica, o resto é uma luta entre a lógica que temos e uma "lógica externa" que se quer impor, condicionando tudo o que nos rodeia. Se a nossa lógica tiver uma determinação e fundamentação irrevogável, tudo o resto colapsa, como um castelo de cartas... (aqui aparecem aqueles avisos "... não tente isto em casa!"). 
Porque, quando foi aberta a "Caixa de Pandora", o gigantesco caos ficou sempre a um pequeno passo de se impor, e o passado e o futuro mostrarão que só a resolução e determinação permitiram o delinear da única ordem possível, em que existissem seres não triviais. A única coisa que obsta a que um caos faça sentido é uma mente que o recuse consistentemente... Afinal, mentes que aceitassem ilusões e fabricações convidariam à entrada de cenários e realidades alternativas, que apenas teriam rumado a um caos perdido numa possibilidade inconsistente. Se Gaia exigiu a sua manifestação, digamos que Úrano viu-se obrigado a enquadrar essa manifestação na única malha (ou Maia) retorcida que aceitaria uma lógica universal consistente. Sendo isto alegórico, é também literal. Num romance queirosiano, isto corresponderia a uma família em que o avô educou a neta de forma a que um seu bisneto fosse um referencial de estabilidade no meio da disfuncionalidade familiar... mas com uma adição ao estilo de Poe, o espírito do avô tentaria ocupar o lugar do bisneto, e falharia na tentativa, porque afinal o seu sucesso educativo eliminaria o espaço possível para aberrações - digamos, uma vingança da avó!

No filme "Inception", para além da questão de "sonhos dentro de sonhos", aparece a questão de implantação de "falsas" memórias. Nesse filme abusa-se do significado de "sonho", porque se os personagens sabem que estão dentro de uma realidade fictícia, então não é um sonho. Num sonho vulgar, se a pessoa se apercebe que está a sonhar é porque acordou... Por outro lado, a ideia de sonho partilhado por várias pessoas (através de um "transpod") é algo que remete mais para uma ficção de realidade virtual. Assim, a única coisa que liga o filme aos sonhos é a forma de produzir a realidade virtual, que não é tecnológica, resulta de domínio cerebral do sonho. Alternativamente encontramos o filme "eXistenZ" de Cronenberg, que explorava um enredo similar, mas no contexto de percepção alterada por "vídeo-jogos futuristas":

Bom, é no contexto semi-científico, que liga a fabricação de sonhos ao cérebro, que se visou o implante de falsas "memórias" em ratinhos. Coloco "memória" entre aspas, porque afinal se Tonegawa mostrou alguma coisa, foi uma associação de estímulos. Como se alguém que tivesse um fígado susceptível a sumo de laranja, seria natural que a mesma reacção se verificasse no transplantado... ainda que o novo dono não soubesse dessa susceptibilidade. Assim, o cérebro dos ratinhos sujeitos a um estímulo de neurónios que ligava a um choque eléctrico é natural que tivesse processado a mesma reacção imediata.
Daí até falar-se em "memórias"... vai aquele passo que dá muito jeito para financiamento de projectos e investigação, muito jeito para o prestígio do cientista, mas que tem menos a ver com ciência. Aliás, "reacções imediatas" nada têm a ver com memórias, são simples estímulos directos, mecânicos, tal como o braço recolhe perante uma chapa quente... nem sequer será o mesmo do que uma reacção pavloviana.

Podemos falar dos limites éticos, quer na utilização de animais para experiências aberrantes, quer no propósito de estudar a implantação de memórias em cérebros animais... sabe-se lá com que propósito futuro!
A Caixa de Pandora está aberta e convidam-se os gatos a este tipo de curiosidades. Curiosamente, os próprios cientistas comportam-se aqui como gatinhos facilmente manipuláveis com os estímulos do reconhecimento e prestígio comunitário. Para isso basta uma máquina poderosa, a que se chamou "Propaganda", essa sim uma verdadeira máquina implantadora de associações que visa "brincar" com a nossa memória e raciocínio:
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P-Machinery - Propaganda

Motor - power - force - motion - drive - motor - force - motion - drive 
Motor - force - motion - drive - power - force - motion - drive 
- Propaganda -
On joyless lanes we walk in lines - a calm but steady flow.
Accompanied by loud commands - our strength is running low.
Another hope feeds another dream - another truth - installed by the machine.
A secret wish - the marrying of lies. Today comes true what common sense denies.
Rotating wheels are destiny - in flame the city lies.
Machines call out for followers far out into the night. The calls of the machines drowning in the steam.
Another hope feeds another dream - another truth - installed by the machine.
A secret wish - the marrying of lies. Today comes true what common sense denies.
The calls of the machines drowning in the steam.
On joyless lanes we walk in lines - a calm but steady flow. Our strength is running low.
Another hope - another dream - another truth - installed by the machine 
- installed by the machine.

Quando Orwell lança a data 1984 para a implantação de um mundo distópico, estaria a referir-se a uma vitória do sistema soviético? 
A Apple é lançada em 1984, e Steve Jobs vê-se na obrigação de esclarecer que o propósito da companhia seria contra o mundo distópico centralizador de informação... e, no entanto, a Apple distinguiu-se da Microsoft por pretender centralizar a produção de conteúdos.
No início dos anos 80 assiste-se a uma "explosão musical", que deixou marcas para essa geração... as músicas eram apelativas, e quanto às letras? Que mensagens procuravam passar?
Seria inocente o tema True dos "Spandau Ballet", quando o ballet que se passava na Prisão de Spandau era ter apenas um prisioneiro, Rudolf Hess, incomunicável, o nazi que tentara negociar a paz em 1941... Acresce a polémica que Bernard Sumner dos "New Order", teria afirmado "You all forgot Rudolf Hess", quando acusaram a banda de promover o nazismo... 
Isto serve apenas para referir que, no meio musical não imperava apenas o diletantismo, e que houve uma tentativa de passar mensagens para a geração mais nova.

Que "casamento de mentiras" invocavam aqui os Propaganda, numa altura em que Gorbashov iniciaria a ascenção que o levaria a introduzir a Perestroika e a queda do muro? Que "máquinas" instalariam uma nova esperança, um novo sonho, uma nova verdade... afinal não sucederia à PeresTroika uma Troika que se iria impor na nova ordem europeia, arrumada a questão da queda do Muro de Berlim?
Afinal, a ordem para soltar os "monstros financeiros" deu-se exactamente no início dos anos 80, por Thatcher e Reagan, fazendo florescer os "yuppies" da finança (designação por contraponto aos "hippies"). Esse mundo da finança foi desregulado com o objectivo de criar desequilíbrios económicos profundos, que levaram ao colapso das transacções da URSS. Só que os "monstros financeiros" continuaram soltos depois disso, como bem sabemos... e tomaram conta descaradamente das máquinas dos Estados soberanos.
Se na altura destas músicas dos "Propaganda" antever uma sociedade distópica, em que o poder estaria centralizado em poucos, e em que os cidadãos formariam filas impotentemente, corresponderia ver uma vitória do sistema comunista, o "casamento de mentiras" tinha uma ideia diferente.
A implantação de memórias e vontades seria orquestrada pela propaganda, a vitória do sistema distópico seria feita pela capitalismo e não pelo comunismo... porque num caso os dirigentes ficam invisíveis, enquanto que no outro caso eram facilmente identificáveis.
Tudo foi preparado para a queda do muro em 1989, e os esbirros dos pentagramas contavam com algo que não veio a suceder... porque eles têm a agenda marcada, que cumprem escrupulosamente, mas esquecem que está desactualizada, porque o "observador" que habita as suas mentes dedicadas não pode sair... devido a compromissos com a consistência da realidade, que não conseguiu ultrapassar.

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