terça-feira, 29 de outubro de 2013

Canhão da Nazaré (3) - ondas à superfície

O canhão, nas profundezas, e as ondas, que se manifestam à superfície, sempre lá estiveram...


Nazaré Blow Up (Hélio Valentim).

... a novidade está na atenção que passaram a ter, por via do havaiano Garrett McNamara.

Desta vez, a atenção foi emprestada pelos brasileiros Carlos e Maya, e este vídeo de Hélio Valentim é notável.

Porém, não deixa de ser igualmente de lembrar o filme de 1929, de Leitão de Barros, "Nazaré, praia de pescadores".

Conheci suficientemente a praia da Nazaré para me recordar dos gritos das mulheres nas ruas, quando uma embarcação se perdeu, engolida pelo mesmo mar que antes era visto com temor e hoje é olhado como recreio, mas que não deixa de guardar os perigos da enorme potência que ali exibe.

Tem mil anos uma história de viver a navegar... há mil anos de memórias a contar:
Sete Mares, dos Sétima Legião (curiosamente do álbum "Mar d'Outubro"...), incorporava algumas imagens do filme de Leitão de Barros (o vídeo tem ainda imagens de um clássico de Serguei Eisenstein, "Alexander Nevsky", de 1938... ver neste link aos 28 minutos).

Há mais do que mil anos de memórias a contar...

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Herança genética - o reino das amebas

Um dos mitos que deve ter caído da cadeira do preconceito genético terá sido saber-se que a maior sequência genética não está entre os seres humanos.

Se olharmos para a herança genética que passa de progenitores para descendentes, a actual liderança destacada vai para uma Ameba, com menos de meio milímetro, de nome Polychaos dubium:
A ameba Polychaos dubium tem a maior sequência genética (encyclopedia of life)

O genoma desta ameba é 200 vezes superior ao dos humanos, e apesar do seu tamanho insignificante, tem algumas particularidades notáveis. Entre essas particularidades estão cristais de forma bipiramidal que guarda em si, ou uma notável capacidade de alterar a sua forma, criando protuberâncias - chamadas pseudopodes ou pseudo-pés. Esta ameba pode ser encontrada na Europa ou América do Norte, em locais de água doce, alimentando-se de algas...

Vemos aqui um claro exemplo de como a complexidade pode ter outras formas. Se o genoma do homem (3.2 Gb) cabe bem numa pequena Pen de 4 Gb, o desta senhora ameba precisa de um disco com mais de 500 Gb, para armazenar 670 Gb.

Tratando-se de um ser unicelular, não indicia haver um processo de meta-conhecimento.
É uma alternativa evolutiva em que parece não haver colaboração com outras células.
Enquanto no caso de animais multicelulares cada célula individual é apenas uma contributo para uma forma de vida agregada, de onde resulta um conhecimento superior  (através da interacção, confiança na dependência, que coloca decisões nos múltiplos neurónios de um cérebro), neste caso a solução é individual. 

Seres multicelulares
Mesmo do ponto de vista de seres multicelulares, o genoma humano fica bastante atrás de dois casos conhecidos, que têm genomas pelo menos 40 vezes superiores.
No caso de plantas, o recorde de 150 Gb está actualmente numa espécie de lírio, denominada Paris Japonica, encontrada com outros lírios no Monte Haku:
Paris Japonica, lírio com o maior genoma entre os multicelulares

Outros lírios mais vulgares, como a fritillaria assyriaca ou uva vulpis, chegam a ter 130 Gb, rivalizando com o maior genoma encontrado num animal vertebrado:
- Trata-se do Peixe Pulmonado Protopterus aethiopicus, com também 130 Gb, e que pode ser encontrado no Rio Nilo:
O peixe pulmonado tem o maior genoma entre os animais multicelulares

Sobre o lírio não conheço nada em especial que justifique tão pesada herança - talvez um nariz mais apurado consiga perceber alguma subtileza no aroma produzido. 
Já o peixe pulmonado é notável por conseguir respirar ar, estando numa categoria particular dos Tetrapodes - ou seja, animais com quatro patas, levando-o ao antecessor vertebrado de onde terão partido a maioria dos animais terrestres - quando saíram da água (época Devoniana), por conseguirem respirar directamente ar, podendo gerar os anfíbios.

Cadeia informativa
O genoma, ainda mal compreendido, pode ter informação redundante. Em seres microscópicos parece haver uma relação mais clara entre a sua complexidade e o comprimento da cadeia genética, no caso de seres macroscópicos isso não é tão evidente... até porque haverá diversos níveis de redundância.

Os seres multicelulares começam por ter 100 Mb e como vemos podem ser até 1500 vezes mais longos, enquanto os mais pequenos animais unicelulares começam nos 20 Mb e podem ser até 33 000 vezes mais longos no seu genoma. Ou seja, a variação entre os seres unicelulares é bem maior, permitindo a existência de animais com complexidade mais pequena.

Se o vertebrado com o maior genoma encontrado é um peixe que respira ar, o mais pequeno é um peixe vulgar - uma espécie de peixe-balão de aquário, chamado Tetraodon nigroviridis, e com 385 Mb tem o seu genoma com apenas um tamanho 9 vezes inferior ao dos humanos. Algumas formigas têm mesmo um genoma superior ao deste peixe (formiga-de-fogo).
Estas contas simples colocam os humanos num patamar pequeno ao nível do tamanho do genoma... são apenas 9 vezes maiores que o peixe-balão, e 40 vezes menores que o peixe pulmonado.

Se outras contas fossem necessárias, parece claro que a novidade humana não se deu pelo tamanho da herança genética. Os factores externos pesaram de sobremaneira na definição dos animais superiores, e o registo de herança genética foi reduzido a um nível muito pequeno - ninguém nasce ensinado - se isso contar para alguma coisa é para uma ameba!

Estamos habituados a que o esquema de interdependência celular tenha levado aos maiores organismos, e que os organismos unicelulares pouco mais sirvam do que acessórios... contudo os próprios organismos unicelulares podem organizar-se em colónias - como é o caso das bactérias, dos fungos, etc.
Não é completamente claro que estes seres separados não deixem de actuar em conjunto. Ainda que não se perceba nenhuma comunicação detectável entre si, como entre formigas, ou entre abelhas numa colmeia, há alguns aspectos em que denotam mais do que uma coordenação acidental.
Quando começamos a ver as coisas numa perspectiva de organismos desconexos, mas em que o propósito pode ser conexo e desconhecido, então estes seres unicelulares, que optaram por não depender de outras células, têm uma dimensão planetária cuja massa total é gigantesca e por reciprocidade oposta faz o conjunto de todos os outros seres parecer uma ameba ao pé de si!

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Verdade ou Consequência

O chamado "verdade ou consequência" era um dos jogos mais parvos que se jogava na infância/ adolescência. Não creio que se possa considerar um jogo popular... as suas origens parecem remontar ao princípio do Séc. XVIII, enquadrando-se bem num certo treino de mentalidade cortesã doentia, onde se exercitava o espírito de grupo, ou melhor, de matilha.
Afinal, procurava-se ou a exposição de uma verdade embaraçosa ou o embaraço de uma actividade compensatória, tomando-se como equivalentes. Servia como uma espécie de treino para um mundo perverso sem alternativas agradáveis... O eventual interesse só resultaria de grande cumplicidade entre os promotores, ou remetendo para alvo de ridículo os novos convidados, externos ao grupo de interesse. Todas estas características são típicas de uma corte mordaz, cujo objecto é a própria corte, o galanteio, a sedução com os mais diversos atractivos fugazes.
Picasso - bacanal... por estranho que pareça, os quadros ilustrativos de festas, 
remetem normalmente para os devaneios mitológicos de Baco.

A burguesia dos Séc. XIX e XX, sendo seduzida pelo fausto aristocrata faria facilmente o papel ridículo de novos convidados, acabando por transmitir cedo aos seus petizes as perversidades que iriam experimentar... por sua vez, estes petizes, por via destes jogos, acabaram por difundir o processo à restante população.
Bom, mas este texto não é sobre as frustrações duma burguesia que julgou poder ser feliz com devaneios hedonistas dependentes dum privar privado. Afinal, o seu maior fascínio - o isolamento parcial (o grupo privado, no sentido elitista), esbarraria com o maior temor - o isolamento total (a rejeição por esse grupo). Tal como no jogo dos petizes, as mecânicas de grupo decidiriam entre o gozar e o ser gozado.

Este texto é sobre a verdade que pode haver na "consequência".

O encadeamento de factos, no sentido causa-efeito, é uma visão do observador limitado, circunscrito pela dimensão temporal. É um problema de modelação animal, já que uma previsão adequada actua no sentido de salvaguarda da sobrevivência - o animal melhor capaz de antecipar acontecimentos, mais probabilidade terá de os aproveitar em seu favor. As frases normalmente terminam aqui. É suposto entender-se o que é "em seu favor"... porém, raramente o próprio questiona os seus interesses. Habituou-se a saber quais são, e não indaga a origem, porque são esses, ou se fazem sentido.
Se o sujeito considerar que são os seus ímpetos irracionais, nem adianta procurar a origem - voga simplesmente num caos que não quer compreender. Se considerar que são os seus desejos racionais, tem que lhes procurar origem e fundamento... algo a que não basta o diz-que-disse dos outros. Aí está sujeito ao mesmo fado que qualquer desgraçado isolado. Não se estando a bater contra ninguém, a posição alheia é praticamente irrelevante, e só é interessante quando concorre na resolução do problema.

Os deuses eram crianças... A inimputabilidade de actos gera irresponsabilidade e inconsequência. Na mitologia greco-romana para evitar a constatação dessa acção inconsequente, mesmo Zeus sofria agruras em resultado das suas decisões. O Olimpo só não era uma brincadeira pouco digna de relevo, porque se introduziram limitações e imputabilidade aos deuses pelas suas acções. Sem essa penalização, a figura dos deuses pareceria a de crianças... e mesmo assim pouco se livravam duma imagem adolescente.

Sem a iminência de contrariedades, sem desconhecimento, o que nos motivaria à reflexão, ao pensamento profundo? O nosso carácter circunspecto, adulto, provém de um medo de consequências. A nossa responsabilidade resulta de uma associação entre as nossas acções e o seu eventual resultado. Essa responsabilidade será tanto maior quanto mais considerarmos que influenciamos o mundo que nos rodeia. Se a certa altura cada acto nosso pesasse de sobremaneira nesse contexto, tanto mais tomaríamos cuidado com todos os detalhes, tornando a vivência num fardo incomportável. Só a inimputabilidade compensa o acréscimo de responsabilidade... e por isso quanto maior é a potência responsável, mais tenta cuidar de ser inimputável. É nessa fase que começa a ser inconsequente, irresponsável, já que o resultado dos actos não parece pesar sobre si. Porém, uma coisa são as dimensões que antevemos, outras são as que nos escapam... e por isso a potência nunca parece ser suficientemente grande para garantir a inimputabilidade, bastando para isso haver o mais pequeno ser que escapa ao controlo total.

Todas estas noções caem na relação causa-efeito. Todas estas noções resultam de uma vivência do tempo como uma entidade ambígua, que permite previsibilidade nalguns actos, mas não deixa de trazer uma associada imprevisibilidade. A previsibilidade deu-nos um pensamento não caótico, e a imprevisibilidade deu-nos um pensamento interminável... a ausência de ambos os aspectos remeteria à loucura.

Qual foi a causa da fama de Hércules, senão o efeito que ela teve?
Perante trabalhos em que improvavelmente sobreviveria, a sua sobrevivência com sucesso ditou o registo.
Por isso, quando Héracles é elevado ao panteão de divindade, é pela improbabilidade do feito, como se o universo tivesse decidido o resultado antes dele acontecer. Isso só é atestado após os acontecimentos, é um privilégio decorativo dos poetas, pois os escritos não se sujeitam à ordem temporal.
O herói era antes de o ser, porque afinal era filho de Zeus... mas a paternidade divina só foi atestada após a vivência humana singular. Antes disso seria visto como um igual pelos outros.

Há associações entre acontecimentos que são convenientes, pois ao aproveitarem a ordem no mundo não-caótico servem a vivência futura pela previsão, e disso é feita a ciência. Bebendo no passado podemos prever uma parte do futuro... mas apenas uma parte dele. Sobre o imprevisível parece que nada se poderia dizer, mas não é assim - podemos compreender o imprevisível sem o prever. A previsão seria logicamente impossível, por definição, mas a compreensão não conhece limitação... e é pelo menos fácil compreender que o imprevisível nos é necessário.

A consequência vai mais além do que a ordem temporal vivenciada. Não é apenas um produto do passado, é um produto do conjunto - passado e futuro, que se revela no presente. Esse é um nexo que vai para além dos tempos, determina e revela a própria noção de tempo. Por isso, a verdade não é um assunto do passado, é também um assunto do futuro... e é essa verdade futura que faz surgir o passado como consequência. Do ponto de vista do pensador, há um tempo de raciocínio que é independente do tempo presenciado e a consequência é uma noção do passado para o futuro, na compreensão. Porém, libertando-se desse aspecto da compreensão do observador, a consequência não está presa a nenhuma ordem temporal. A existência de um passado que justifique o presente é um nexo necessário à própria existência, sob pena dela se manifestar como infundada pelo pensamento que a contempla. E é esse nexo de existência que remete o futuro como causa do passado. O passado não é suficiente para o nexo existencial, já que o passado poderia remeter para qualquer existência, ou até para a não-existência absoluta. Só depois de se cumprir no futuro completo é que a consciência despertou e renasceu para se contemplar, podendo então ver o futuro como um passado inconsciente.